terça-feira, 24 de junho de 2008

Documentário: Ônibus 174

O sociólogo Luís Eduardo Soares, no filme Ônibus 174, discorre sobre a “invisibilidade” dos menores de rua no dia-a-dia dos centros urbanos brasileiros. Eles estão em todos os lugares – praças, parques, calçadas, semáforos e outros – e recebem, ostensivamente, o desdém dos transeuntes que por eles passam. Meninos e meninas, de idades variadas, içadas às ruas pela violência familiar, a pobreza, a imposição dos pais ou o simples descrédito com a vida, não se relacionam com outras pessoas que não sejam os próprios colegas de rua. Ninguém lhes dirige a palavra. Os vidros dos carros sobem e pedestres até atravessam a rua ante a presença de um desses garotos. São “invisíveis” perante a sociedade que, devido à convivência diária com o problema, passou a encará-lo de forma habitual e a incorporá-lo à rotina.
Sandro do Nascimento saiu de casa cedo, após presenciar o assassinato da mãe. Nas ruas, a “invisibilidade” desaparecia quando realizava assaltos e roubos, pois o medo estampado no rosto da vítima indicava a influência da sua presença e que, de fato, ele
existia e possuía uma identidade. Fora isso, era apenas mais um Sandro. Até que no dia 12 de junho, após o roubo frustrado de um ônibus da linha 174, Sandro tornou-se “Sérgio”, nome dado a ele pela polícia para estabelecer a comunicação entre ambos. A TV logo apareceu e exibiu “Sérgio” para todo o país e o mundo. É o momento sublime da “visibilidade”, pelo qual Sandro esperara a vida inteira. Ao final do episódio, longe dos holofotes, “Sérgio” dá lugar a Sandro e, novamente insignificante, é assassinado pelos policias dentro do camburão, por estrangulamento. A inevitável comparação entre o documentário Ônibus 174 e as edições analisadas do Jornal Nacional, guardadas as devidas diferenças entre os gêneros, traz uma constatação evidente: Sandro é o personagem do filme; e “Sérgio”, do telejornal. A intenção de José Padilha, diretor do documentário, é trazer à tona o período de “invisibilidade” de Sandro, com o objetivo de tirar o espectador da inércia e acordá-lo para o problema que está à sua volta. Sandro tinha família, passou por prisões imundas e subumanas, sobreviveu ao massacre da Candelária, tentou “arrumar a vida” e, sem conseguir emprego, terminou morto em um camburão. O Jornal Nacional, por sua vez, explora a personagem “Sérgio”, que apresenta todos os ingredientes para reforçar o clima de pânico na
sociedade: negro, drogado, favelado, foragido, “pactuado com o diabo”, cruel e disposto a matar. O telejornal utiliza imagens e
falas de “Sérgio”, gravadas durante o episódio, até o esgotamento emocional do telespectador, numa espécie de catarse coletiva. O que interessa ao JN são apenas os momentos de “visibilidade” de Sandro, em que esteve sob a mira das câmaras. Ou seja, no papel de “Sérgio”.
Ônibus 174 caracteriza-se por ser um documentário interativo, segundo a classificação proposta por Bill Nichols. Não há voz em off, ou seja, não apresenta um narrador, e o filme sustenta-se na realização de entrevistas. Ônibus 174 traz ainda o ponto de vista do diretor sobre o episódio, que é o de focalizar a vida de Sandro do Nascimento, de modo a lhe dar importância histórica e, de certa forma, explicar as razões pelas quais ele foi o protagonista da tragédia de 12 de junho de 2000. Outra característica é a utilização de imagens colhidas in loco (no local dos acontecimentos)
para detalhar o episódio do ônibus 174 e relatar a trajetória pregressa de Sandro do Nascimento. O filme também apresenta um discurso montado por diversas vozes, a partir das entrevistas realizadas. Elas são classificadas em três níveis: os envolvidos
na tragédia; os participantes da vida de Sandro; e os que opinam deliberadamente sobre o caso, sem vínculos diretos. A junção destes três grupos compõe a “teia” discursiva do filme, resultando no aprofundamento do episódio. Sandro do Nascimento, por sinal, integra esta “teia”, a partir da inclusão de trechos dos seus
discursos proferidos aos policias, durante o seqüestro.
A narrativa de Ônibus 174, por sua vez, dialoga entre o fato em si e a vida de Sandro, num processo de “vai-e-vem” em que um remete ao outro. Enfim, o filme aborda um tema social, herdando o legado da Escola de Grierson. A partir do episódio, coloca-se o problema social brasileiro em diversos aspectos, desde o sistema carcerário até a “invisibilidade” dos meninos de rua. Por outro lado, as cinco edições analisadas do Jornal Nacional trazem um panorama diferente do apresentado pelo filme Ônibus 174. O tratamento do episódio prima por sua espetacularização, com forte recorrência a fatores emotivos e “chocantes”, a partir da veiculação das imagens do seqüestro e da repercussão dos
reféns após o desfecho fatal. O JN chega a utilizar a informação de que Geisa Firmo Gonçalves, vítima do seqüestro, estaria grávida, aumentando ainda mais a carga dramática da tragédia. Detalhe: ao invés de confirmar a informação com a conclusão do laudo médico, o JN preferiu apoiar-se na afirmação de uma fonte periférica.
Por isso, teve que se retratar ao final da edição de 13 de junho, após ter explorado largamente a suposta informação privilegiada da gravidez da vítima. O JN também extrapolou na veiculação das imagens do episódio, no qual os momentos mais violentos foram insistentemente exibidos, criando a sensação de pânico no telespectador, que se coloca no lugar dos reféns. O desfecho fatal, em que o policial atira contra Sandro do Nascimento, chega a ser mostrado em câmara lenta, com direito a replay, bem ao estilo das transmissões futebolísticas. Em relação às pessoas “que falam” no telejornal, há uma completa vinculação com as autoridades, revelando
o forte apoio do noticiário nas fontes oficiais. Os reféns, por sua vez, surgem como figuras dramáticas e que emprestam suas emoções às reportagens. E aos especialistas, resta o papel de confirmar o que já foi dito pela matéria jornalística, servindo de marionete em prol da credibilidade do telejornal. Como o psicólogo que, através das imagens, identifica uma tendência do uso de cocaína por Sandro. Nada concreto, apenas um indício sustentado pelo “nome” do profissional.
A cobertura do Jornal Nacional tem a intenção de disseminar o “pensamento único”, como se aquele mundo criado pelo telejornal representasse fielmente o “real”. Para isso, o JN restringe as personagens, que se limitam a esclarecer o episódio e a repercuti-lo, sem entrar no contexto social da questão. A omissão da informação de que Sandro era um dos sobreviventes da Candelária consiste na evidência maior dessa manipulação da “realidade”, abortando debates importantes para a sociedade. Ao longo das cinco edições há também uma crescente perda de interesse pelo assunto, após o esgotamento emocional do caso. O tempo conjunto das reportagens cai bruscamente do primeiro ao último
dia, pois já não há fatores sensacionalistas a serem explorados.
As matérias ficam mais objetivas por conseqüência da escassez de elementos emotivos, e não por mérito jornalístico. Por fim, diversas passagens do telejornal deixam nas entrelinhas uma clara separação entre “nós”, os telespectadores, e “eles”, os marginais drogados e violentos das favelas. A morte de Sandro é um desejo implícito, física e simbolicamente.
Após a análise do filme e das edições do telejornal, a palavra “abismo” vem à boca para descrever a distância entre a “realidade” apresentada por cada um deles. O JN revela uma impressionante superficialidade na abordagem do fato, explorando-o como se fosse uma novela. Em entrevista, Bonner afirma que a interpretação da notícia deve ser feita pelo telespectador, que assim formula sua opinião. Mas como construir algo a partir de elementos tão circunstanciais e emocionais? E, além do mais, a própria espetacularização do fato já é um elemento coercitivo neste processo de elaboração da “opinião” que, portanto, torna-se induzida.
O documentário Ônibus 174, ao contrário, vai a fundo na problemática brasileira, a partir da trajetória de vida de Sandro do Nascimento. O aprofundamento do filme é tal que, após assistilo, há uma sensação de choque da “realidade”, um autêntico soco
na boca do estômago. A narrativa perpassa o sistema prisional, o massacre da Candelária, os internatos mirins, a falta de perspectiva dos garotos da favela, o preconceito e a “invisibilidade” adquirida pelos alijados do convívio social. Ao invés da refeição fast food do Jornal Nacional, o documentário traz um banquete repleto de pratos que, juntos, alimentam o sentimento de “realidade” proposto pelo filme.
A comparação serve também para alertar sobre outro problema: o da amplitude. O entretenimento proposto pelo JN, ao ritmo do novelesco, do sensacional, do espetacular e do emocional, atinge 40 milhões de pessoas diariamente, levando às casas a superficialidade dos fatos e uma visão induzida e pobre da “realidade”. O filme Ônibus 174, no entanto, teve um público total de aproximadamente 70 mil pessoas no Brasil, segundo o produtor Marcos
Prado. Ou seja, em amplitude bem menor que a do Jornal Nacional.
É necessário, portanto, discutir o papel da mídia e, particularmente, o do telejornalismo – principal meio de informação da população. Caso contrário, corre-se o risco de termos uma geração de Homers Simpsons a babar diante da TV, trancafiada dentro de casa e prenhe de pânico.